Apenas 30% dos casos de violência contra a mulher na Bahia têm medida protetiva

Por mês, são abertos em média 1.212 processos de violência contra a mulher no estado

csm_magnolia1_3202d264d6Magnólia procurou ajuda após começar a sofrer agressões (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)

Durante 15 anos, Magnólia Carvalho de Jesus, 50 anos, acreditou viver o relacionamento dos sonhos. Ela e o ex-marido, 60 anos, eram adeptos ao respeito e ao companheirismo. De uma hora para a outra, tudo desmoronou.

“Ele começou a ter um comportamento agressivo, a falar muitos palavrões, viver sempre irritado, principalmente após meus plantões de 24 horas”, revelou.

Magnólia, que é técnica de enfermagem, contou ao CORREIO que, após as agressões verbais, psicológicas e patrimoniais, começaram a acontecer os pequenos empurrões, depois outros mais fortes. Foi quando ela decidiu procurar ajuda e, em 5 de novembro de 2018, conseguiu na Justiça uma medida protetiva contra o ex-marido.

A medida foi uma das 10.864 distribuídas pela Justiça nos últimos dois anos na Bahia. O problema é que elas representam apenas 37,3% dos 29.089 processos de violência contra a mulher abertos no mesmo período no estado. Atualmente, há 85.059 ações penais em curso na Bahia que têm como tema a violência de gênero no estado.

As razões são diversas. Uma delas é o fato de que nem todas as vítimas pedem a medida, muitas vezes por insegurança. Há, ainda, restrições quanto às situações de violência em que a proteção pode ser aplicada.

“Um dos requistos é que a violência seja praticada no âmbito das relações domésticas e familiares. Além disso, a violência precisa ser em razão do gênero, pelo fato da mulher ser mulher”, explica a defensora pública Lívia Silva de Almeida, do Núcleo Especializado de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado.

Isso sem contar os casos em que a medida protetiva é concedida, mas demora a ser cumprida pela dificuldade para encontrar o agressor – que se esconde. Foi o que aconteceu com Magnólia, e que a ordem judicial levou 23 dias para ser cumprida.

Neste intervalo, aconteceu o que ela mais temia: ela teve o quarto arrombado pelo ex-marido, que lhe atacou com golpes de caratê.

“Eu recebi socos e acabei com a cabeça e a boca machucadas. Precisei ficar fora de casa por dez dias, porque tinha medo de voltar e encontrá-lo a minha espera”, disse.

A medida de proteção concedida em favor da técnica de enfermagem, que ainda produz efeitos, exige que o agressor mantenha distância de 200 metros da vítima e nem compartilhe com ela o mesmo espaço e contato por qualquer meio de comunicação: “Ele me disse que essa medida dá liberdade a ele e prisão para mim. Prisão, porque fico refém, com medo de sair e dar de cara com ele”.

Números 
Por mês, são abertos em média 1.212 processos de violência contra a mulher na Bahia, de acordo com dados do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). São 51% nas varas de Salvador e 49% nas comarcas de Camaçari, Feira de Santana, Juazeiro e Vitória da Conquista. Os números correspondem ao período de janeiro de 2017 a dezembro de 2018.

Entre as comarcas do TJ-BA, Vitória da Conquista é a que menos concede medidas protetivas – 15,7%. Quem lidera é Juazeiro (69%), depois Camaçari (59,4%), Salvador (45,6%) e, por último, só perdendo para Conquista, Feira de Santana (24%).

Das medidas protetivas concedidas no período de dois anos, algumas estão ativas e outras já foram extintas por perda do objeto – quando não há mais necessidade da proteção, seja porque a vítima foi realocada a uma casa de apoio ou em caso de prisão do agressor. Nas cinco comarcas, são 9.911 medidas que ainda produzem efeitos.

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Autonomia
A desembargadora Nágila Brito, presidente da Coordenadoria da Mulher do TJ-BA, afirma que a medida protetiva é o mais eficaz instrumento criado pela Lei Maria da Penha, por ter natureza cível: “Elas podem ser concedidas sem ouvir a outra parte, de urgência, até por autoridade policial, devendo ser reforçada ou não pelo Judiciário”.

Ainda de acordo com ela, nem todos os processos abertos no tribunal por agressão a mulheres levam à concessão da medida protetiva. “O número de ações não precisa corresponder ao número de medidas, justamente por esta ser de natureza cível, o que a torna independente. Mas nas ações penais, outras medidas podem ter sido tomadas para garantir a segurança da mulher, como a decretação da prisão preventiva do agressor”, explica.

Ainda segundo Nágila, é raro um juiz não acatar um pedido de medida protetiva. Mas a defensora Lívia Silva de Almeida, pensa diferente. “Eu tenho muitas medidas aqui em Salvador sendo indeferidas porque a juíza não vislumbra que a violência seja de gênero. Ela afirma que houve uma briga por razões patrimoniais, quando a questão de gênero pode estar por trás”, diz.

A desembargadora ressalta que o prazo de vigência de uma medida protetiva pode variar a depender do juiz responsável pelo caso. “Uma vez concedida a medida, a mulher não pode voltar atrás. Isso acontece, porque muitas  sentem medo e dizem estar arrependidas”, aponta.

Está na lei
Embora tenha sido criada para proteger a mulher, a medida protetiva também é aplicada em casos que envolvam homens como vítimas. Em 2016,houve alteração na lei, que permitiu que a medida, em caso de urgência, fosse concedida por autoridade policial, não só pelo Judiciário. Isso, para a desembargadora do TJ-BA, aumentou a eficácia e a celeridade.

A mulher agredida ou em situação de risco iminente pode solicitar a medida protetiva de duas maneiras: ou por meio de representação do Ministério Público ou diretamente nas varas especializadas no atendimento à mulher de cada comarca do TJ-BA. O MP-BA foi procurado, mas não se manifestou até o fechamento desta reportagem.

Cada medida prevê diferentes condições, algumas determinam que o agressor se distancie da vítima por 200 ou mais metros, outras, além disso, impedem o acusado de entrar em contato com familiares e amigos da mulher. Depende do nível de risco.

A Ronda Maria da Penha, de 2015, é  responsável por fiscalizar as vítimas de violência no estado, fazendo visitas recorrentes às casas onde elas vivem e se certificando que os agressores vêm cumprindo a determinação. “É importante denunciar na primeira vez. Segundo o Ipea, uma mulher sofre, em média, sete violências antes de denunciar”, afirma a major PM Denice Santiago, comandante da Ronda Maria da Penha.

Nágila Brito destaca que o TJ-BA tem projetos de tornar cada vez mais simplificada a comunicação entre autoridade policial e Judiciário: “A gente espera implementar na Bahia o encaminhamento da medida por meio eletrônico. A delegada concede, envia à juíza, que acata ou rejeita. Isso torna o procedimento mais rápido. Uma medida protetiva bem aplicada pode evitar um feminicídio”, garante.

* Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier e da editora Mariana Rios

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