Facções usam redes sociais para divulgar torturas na Bahia

CORREIO teve acesso a vídeos gravados em Tancredo Neves, Simões Filho e Maragojipe

Não basta ameaçar, humilhar, espancar, torturar e até matar. A barbárie tem que ser filmada e lançada nas redes sociais por traficantes que atuam em todo o estado. Os vídeos são as armas do mundo virtual usadas para aumentar a reputação da facção sobre os rivais e promover o terror nas comunidades dominadas.

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O CORREIO teve acesso a alguns vídeos. Dois deles tratam da mesma situação, com alguns trechos distintos. São cenas fortes do chamado “tribunal do tráfico”, onde a “sala de audiência” é a via pública e que acontece a qualquer momento, sem que ao menos os “réus” sejam previamente avisados. Foi o que aconteceu com duas mulheres no bairro de Tancredo Neves, em Salvador, no último mês de abril.

As mulheres apanham porque teriam levado ao local pessoas que não pertenciam à comunidade do Buracão, localizada atrás do Conjunto Habitacional Arvoredo, região onde as imagens foram gravadas.

Em um outro vídeo, um rapaz apanha de pelo menos quatro homens, que se revezam ou atacam ao mesmo tempo com pauladas, chutes e murros. A imagem começou a circular em janeiro deste ano, na cidade de Simões Filho, Região Metropolitana de Salvador (RMS).

Em um terceiro vídeo, duas mulheres são espancadas porque anteriormente brigavam entre si em dezembro do ano passado, na cidade de Maragojipe, no Recôncavo. Ao final, atordoadas, ensanguentadas e com os cabelos abruptamente cortados, elas sinalizam que aprenderam a lei do tráfico local, que pune severamente a briga entre moradores.

Buracão
As duas mulheres estão encurraladas em uma das paredes da comunidade Buracão. Nas imagens, as jovens são sentenciadas ali mesmo por “juízes” de igual idade ou inferior, que, no lugar do malhete – martelo de madeira usado pelo juiz – seguram tábuas. “Eu não trouxe o cara para boca, não, eu não trouxe, simplesmente eu falei…”. Antes de terminar a frase, a mulher e a amiga começam a ser surradas a pauladas e murros.

Nos vídeos, um de 42 segundos e outro de 50 segundos, elas tentam proteger as pernas, costas e rosto, mas em vão. Pedem socorro. Uma voz ao fundo ordena para que elas abram as mãos. Elas voltam a levar pauladas nas pernas por não cumprirem a ordem. Então, as jovens passam a levar pauladas nas mãos, os chamados bolos.

“O cara te roubou? Trouxe o cara para a boca por quê? Abra a mão”, diz um dos bandidos, antes de aplicar mais bolos. Ainda na imagem, no chão, uma das mulheres dá a entender que não conhece os criminosos. Elas gritam.

A sessão de espancamento não dura mais que um minuto e já quase no final, os criminosos intensificam as surras a ponto de uma das tábuas quebrar no corpo de uma das mulheres. As imagens terminam com as mulheres subindo às pressas uma escadaria ainda sob pauladas.

O CORREIO conversou com agentes da 11ª Delegacia (Tancredo Neves) que confirmaram que os vídeos foram gravados na comunidade de Buracão. “Sim, recebemos as imagens, mas nenhuma das mulheres veio à delegacia registrar a queixa”, disse o policial.

Risos
Num local fechado, um rapaz só aparece de pé por frações de segundos. Ele é atacado simultaneamente a pauladas por pelo menos outros quatro rapazes, que o fazem cair num canto da parede. Em seguida, leva tantos socos que mal consegue respirar no vídeo de um minuto e seis segundos. Em alguns momentos, é possível ver a imagem dos agressores rindo da situação.

O vídeo foi gravado em um prédio vazio, de portão verde, em Simões Filho. Em meio à surra, aparece um rapaz segurando um celular e se junta aos demais agressores no ataque. Em seguida, a vítima é cercada e apanha de todo o jeito: pauladas, murros, chutes. Ele tenta se proteger, agachando e leva as mãos à cabeça, mas sem sucesso. Ele então suplica: “Minha cara, não”.

No final do vídeo, um dos criminosos diz o que seria o motivo do espancamento: “Pra você ver o que é respeitar a vida dos outros”. A imagem termina com o rapaz deixado ao canto.

O CORREIO procurou o delegado Ciro Carvalho, titular da 22ª Delegacia (Simões Filho), que disse que enviou o vídeo aos investigadores da unidade com a finalidade de identificar a localidade da gravação e autores.

‘Zeca mandou’ 
Em um vídeo, duas mulheres aparecem se engalfinhando num calçamento de paralelepípedo na cidade de Maragojipe. Uma delas é arrastada pelo cabelo e chega a ficar com os seios à mostra. Já no segundo vídeo, as duas mulheres aparecem apanhando. A jovem em primeiro plano já está com o rosto ensanguentado quando leva uns socos na face de um rapaz. Ela tomba no chão, e o autor da gravação diz: “Zeca mandou, essa é a ideia…”

Em seguida, o autor do vídeo se aproxima da segunda mulher que aparece sentada em um batente, apanhando de três homens que usam pedaços de madeira, vassoura e corrente de bicicleta, e torna a repetir: “Zeca mandou, abraça a ideia”. Zeca, líder do tráfico local, não quer brigas entre moradores para não ter a presença da polícia no local.

“Corta o cabelo das duas”, diz um dos agressores. E foi feito. Além do espancamento, as duas mulheres tiveram os cabelos cortados à força e aparecem no terceiro vídeo ainda desnorteadas e dizendo ao mesmo tempo e acenando com a cabeça um “sim”: “A gente abraça a ideia”. Em seguida, o autor do vídeo diz: “A ideia é do Pai. É para ficar de exemplo”.

O CORREIO não conseguiu contato com a delegacia de Maragojipe nem com o coordenador da 4ª Coordenadoria do Interior (Santo Antônio de Jesus), o delegado Edílson Campos Magalhães Alves.

Justiça informal
Para o professor titular de Sociologia e docente permanente do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Eduardo Paes Machado, os criminosos estão preocupados com a reputação moral. “Quanto mais violência, maior é a reputação moral. Você acaba tendo um triunfo em relação aos seus adversários [ao exibir as imagens]. Os grupos delituosos também utilizam os vídeos para dissuadir seus adversários, tipo ‘não vamos mexer com eles’, ‘não vamos pegar no calo dele’”, explica Machado.

Segundo ele, a violência entre esses grupos reflete a justiça informal. “Uma série de conflitos resolvidos através do uso da violência. Uma justiça retaliadora e que retroalimenta a violência.”

O coronel da reserva Antônio Jorge Ferreira Melo, coordenador do curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia, disse que o crime usa as redes sociais como subterfúgio para ameaçar as pessoas. “Antigamente, a ameaça era por telefone. Uma ameaça velada. Hoje esse procedimento é coisa do passado e se usa as redes sociais”, diz.

“Se você é um x-9 (informante da polícia) ou se relaciona com outras organizações criminosas, será alvo das ações que serão disseminadas nas redes como um aviso”, complementa.

Segurança Pública
Em nota, a Polícia Civil informou que as investigações “são contínuas no sentido de identificar e prender integrantes de quadrilhas, além de desarticular o crime organizado. Qualquer imagem que contém ações delituosas e que cheguem ao conhecimento da polícia judiciária, tem sua veracidade apurada”.

A nota diz ainda que o “trabalho investigativo é realizado tanto por equipes de delegacias territoriais, quanto do Departamento de Combate e Repressão ao Crime Organizado (Draco), e do Grupo Especializado de Repressão ao Crime por Meios Eletrônicos (GME)”. O CORREIO pediu uma fonte do Draco e do GME, mas não foi disponibilizada pela Polícia Civil.

O CORREIO também procurou a Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA), que informou que a resposta é a mesma da Polícia Civil. Numa outra solicitação à assessoria de comunicação da SSP, o CORREIO procurou o secretário da pasta, Maurício Barbosa, que foi reeleito presidente do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conesp).

Foi perguntado como o conselho vê essa conduta dos traficantes, como a entidade vem agindo no país para combater essa prática, se Barbosa tem levado ao conselho esse tipo de denúncia, qual tem sido a recomendação do conselho, se na Bahia alguém já foi identificado ou alguma denúncia foi feita dessas agressões filmadas e compartilhadas. Mas a assessoria respondeu que valeria a nota da PC.

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